Um poeta maior da cuiabania

Por Ricardo Guilherme Dicke*1


Sonho de Menino é Piraputanga no Anzol: João Bosquo me mostrou só este original acima (sério), mas deve ter outros. Um poeta que escreve assim deve ter mais de um livro sério. Onde o assunto maior deve ser a nossa cidade “apesar de seus assassinos”, “apesar de seus inimigos”, “apesar de seus poetas”. Poeta inventor do antiespelho, ele se espanta com os modos com que os peixes tentam decifrar este estranho mundo onde existem autoridades, pessoas gradas e outros bichos, afora outras águas de outros rios e de outros mares que “são para outros peixes”...

É também descobridor dessa coisa des-solidão onde ele acredita ver seu pai. Penso em Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral de Mello Neto ao ler os poemas de João Bosquo Cartola e participar de estranhamente da surda beleza que ele vai buscar na força de sua contenção, que faz a sua ciência dos ritmos e que o sagra poeta maior apesar de jovem. Porém, esses mestres são apenas referenciais, pois, para ele, para ser mestre, mesmo sendo desconhecido dos seus conterrâneos poetas numa cidade povoada de poetas, falta pouco, em toda acepção da verdade, para encontrar o verdadeiro caminho do mestrado dessa poesia.

João Bosquo ainda é jovem. Os milagres da forma e do conteúdo, do ritmo e da força estão à sua espera para daqui a mais uns dez ou vinte anos de aplicação e da feitura do oficio de poesia. Os poetas não se fazem num dia, a não ser que se seja Rimbaud, e mesmo assim ele não se fez num dia e sim em toda uma adolescência genial.

Num poema como “O Homem não morre porque quer” ele parte do pessimismo em direção ao otimismo, numa flagrante explosão de talento aprendida com os poetas mais que maiores, os poetas de sempre, e não só neste poema como quase todos os desta coleção da Piraputanga. Num belo e estranho poema como essa “Canção do cão da noite” somos abismados pelo vagar de mistério no balouçar vago que propicia a noite refletida nos olhos de um cão.


O social no poeta é muito forte (depois de Marx, todos somos socializantes) e ele observa o comportamento das pessoas que deveriam considerar-se como irmãos dentro do ônibus, se consideram apenas como vãos desconhecidos. Do social ao político não existe fronteira. Nem mesmo partindo-se do psicológico ou do religioso, porque tudo é caminho no mundo da poesia.

João Bosquo Cartola é um poeta que enxerga e busca estudar o muno com olhos de filósofo, senão ele não teria feito poemas como “Ninguém” ou “A cidade” ou “Das pessoas nos bares” sendo que neste último poema o poeta se transfigura e mostra o irreal de todos os dias (ou noites) que acontece nos bares da cidade (onde o poeta observa do seu posto de observação com seus telescópios ou microscópios telúricos) e vê estranhas coisas que ele procura contar racionalmente. São mistérios o que o poeta vê... Mistérios pode-se contar, por acaso? O poeta inventa sua língua, subliminar aos arcanos, e procura explicar os segredos, raros são os verdadeiros iniciados, entre os quais se contam aqueles que sabem ter olhos luminescentes e enxergar na vasta escuridão onde tudo desafia ao idioma do poeta...

O poeta nos convida a “Sobreviver o dia da solidão sem viventes”: claro ou escuro enigma? E ainda esse poema raro “Há Natal e Há Natais”, que me faz lembrar o socialíssimo Thiago de Mello em sua preocupação pela fome e pela preocupação com seu semelhante, coisa que hoje parece estar esquecida para sempre tanto entre os irmãos gerais do povo como pelo Estado “esse pior dos monstros frios” como o chamou Nietzsche. O metafísico se mescla ao político “onde Heidegger cumprimenta Marx” no dizer de Moacyr Félix, é o que me lembra o poema “Repouso”: o duro flutuar agônico, “enorme tédio pardo”. Isto serviria para os políticos interesseiros, uma sátira à Juvenal (o latino) em “Homem Morto” e outros poemas.

O poeta sabe, o poeta conhece muita coisa nova e antiga: leia-se atentamente o poema “Esquecer”: o poeta é um sábio (naquela acepção que os poetas antigos chineses taoistas davam ao termo sábio e à palavra sabedoria) e isto em estado natural. Porque o poeta é um ser muito frágil e tremendamente inocente. Simplesmente porque os deuses falam pela sua boca. De onde vem tanta sabedoria se não fosse dos deuses? Os deuses também são poetas e adoram fazer falar por certos iniciados nesta linguagem de mel e hidromel (e às vezes de fel) que é a poesia. Às vezes o poeta sonha com o senso comum: “Ambições”. Às vezes raia o jornalismo apaixonado: “Notícias”. Às vezes o poeta emaranha imensas máculas sociais e se sente:

traste, trapo, sapo
saco de gato e sapato



mas é tão natural: quem não se sente assim entre os poetas neste fim de século poluído e podre, prestes a explodir entre os armamentismos de Reagan e Chernenko? O poeta quer ajudar, quer amar seus semelhantes, quer ao menos o mínimo, entender os seus semelhantes, mas não, nada, a vida, essa coisa braba, mole e viscosa não deixa, não dá tento nem tempo. E tudo passa, tudo flui imensamente como diz Heráclito de Êfeso, o filósofo pré-socrático.

Disto é que a arte precisa. Artistas que não escrevem coisas bonitinhas para deleite e agrado de elites, de quem não tem o que fazer, mas coisas duras e verdadeiras mesmo que doam, que firam, que tenham a crosta braba da Verdade, que sejam verdadeiras. Poemas como “Animais” e “Homens de meia-idade” revelam preocupações do autor por um tipo de vida que está acabando: a classe dos pobres e a classe média, já que foi decretado pela Ditadura só a garantia de vida e sobrevivência das chamadas elites, a classe alta.

Dever do poeta e da sua poesia” mostra a estética do poeta: arte engajada, compromissada em mais alto grau, já que se põe ao alcance e ao serviço daqueles que sofrem as opressões e as mazelas sociais e fazem legião e maioria espoliada e espezinhada. “O poder do rato”: até onde nos leva o niilismo do nosso tempo (Voici le temps de assassins, segundo Arthur Rimbaud):

Toda beleza do mundo

se encontra num rato morto

é a estética dostoiveskiana e andreieviana de alguém muito amargurado que constata que neste mundo não há mais lugar para o homem; para os ratos, sim, há lugar, mas para o humano não há, alguém que quase não crê mais nas soluções deste mundo que só nos oferece o horror e o ódio, a feiúra deliberada, o código do contágio com o que se nos oferece o rato morto. E o que nos pode oferecer um rato morto? Nada mais a não ser um prato de comida (somos irmãos dos nossos irmãos nordestinos, todos brasileiros) e também o tétano e outras doenças: uma estética do oprimido, uma estética que sou tentado quase a dizer, uma estética do tétano. O poeta se aferra à sua dolorosa contenção e às suas visões do holocausto do final do século XX com seus horrores mudos, com seus terrores silenciosos, onde os povos da América Latina agonizam sob o tacão dos generais opressores unidos aos mercadores de Wall Street.

Que poeta completo e verdadeiramente consciente não pensa como aquele monologador de “Comportamento”? É a pura verdade de alguém que desperta e nota que em redor só existe isso: “cabeça inútil de utilidade nenhuma que só pensa em cachaça e futebol”, a constatação da alienação a que nos submetem os governos que repudiam a educação dos seus filhos: merecem mesmo morrer, como será, como diz o poeta, já que não prestam para nada?

O poeta não fala em revolução, mas eu sim, é nisso que eu penso, meu único pensamento, meu primeiro e último pensamento, a revolução que redime e que traz o que ficou esquecido, isto é a comida, a educação e a vida útil. É uma rebeldia contra o país do “milagre econômico” e do “pra frente, Brasil”, do Médici, o assassino elegante de olhar criminoso e frio, que de algum modo ou de outro continua até os miseráveis dias de hoje em que o povo pensa que existe alguma Abertura e luta pelo direito autêntico das Diretas-já, dias que continuam sendo os mesmos da miséria espiritual de 1964.

De repente o poeta se alumbra ofuscado pelo cósmico:

Como são imensos os olhos,

como são eternos os olhos

de todos seres vivos,

cósmicos,

pelo infinito do cosmo.



O cósmico junto com o social. Assistimos passivamente ao assassinato progressivo de todo um povo: é a constatação de todos nós, poetas menores ou maiores. Diz-se que um poeta atingiu a maioridade quando conquistou um estilo próprio. Com ou sem nossos estilos constatamos a devastação espiritual do homem neste malsinado fim do século vinte. Aqui nada reconhecemos de bom nem humano. Só o império do mal crescendo, ascendendo aos cumes. Mesmo que nos acusem de maniqueístas: é isso o que vemos, é isso o que constatamos, nós, os poetas, as antenas da raça. E o tédio que carcome nos mormaços desta cidade que apesar de terrivelmente isolada, terrivelmente longe dos centros culturais, está se tornando desumana e poluída como São Paulo e New York:

O tédio me mata

na angustiante noite

longa e silenciosa

longe de meu dia



Melhor em sua vocação é “O adivinhador de gente”, o poeta social (já ia dizendo socialista) que quer “simplesmente justiça”. Mas às vezes o poeta político torna-se lírico ante a poesia em forma de pintura que se evoca do quadro do nosso grande pintor João Sebastião, como no poema “A onça de João Sebastião”, e o poeta de cimento e bar torna-se “somente selva”, em estado puro de verdadeiro mato-grossense, que é isso mesmo o que adivinhou o poeta: selva. Porque todos os verdadeiros poetas encontram o que procuram em sua adivinhação ou então não são poetas.

O poeta procura e procura como nesse longo e estranho poema que dá fim a coleção da Piraputanga, o “Poema Noturno” é o poeta que sai à noite e o que encontra no mundo? O poeta parece não encontrar o que busca e seu caminho parece niilismo e pessimismo numa linha seca e dura que muito me lembra, sei lá por que, Graciliano Ramos, o mestre de Palmeira dos Índios, nas Alagoas; vergonha, amor, verdade e dor de quem procura eternamente nesta vida e só encontra a sombra do que procura:

Saio noites e noites como noite,

frenético em busca, procura, à caça

uma outra noite perdida

e grávida de outra realidade:



o inefável, o intangível, o imponderável mas em sua medida, dentro do ritmo, eis a missão do artista. E João Bosquo Cartola é um grande artista porque nos dá tudo isso. O artista tem que dar alguma coisa. Nunca, porém desanimado, apenas niilista, isso todos somos um pouco nestas iniquidades do fim do Século XX, mas sempre com os olhos do buscador da verdade, dessa realidade melhor que se adivinha depois de todo este longo e triste holocausto: tudo isso nos evidencia este livro de poemas de um dos nossos grandes poetas em formação da atualidade (ainda em work in progress, segundo Bunyan) desta Cuiabania aviltada e mercantilizada. Nosso João Bosquo Cartola com seu Sonho de Menino é Piraputanga no Anzol, cujo título não diz do profundo e cortante conteúdo social de um dos melhores livros de poesia já aparecidos, nos revela um submundo conturbado, cinzento e difícil nesta nossa florida Cidade Verde, fluindo subterraneamente sob suas otimistas belezas.



Há nos seus poemas uma constatação eminentemente existencialista: o poeta mais que acha, vê que o mundo tem permanentes feridas expostas (e demais) e isso nos faz pensar em nossa própria fragilidade e em nossa própria contingência, além de nos remeter para prosadores que fazem destes temas os seus mundos, como Sartre e Camus. Mas o poeta tem linguagem e ritmo próprios e isso é o que basta para sua afirmação. Ele será um dos grandes destes arredores, destes brasis: o que lhe falta é apenas um pouco de “anos de aprendizagem, anos de peregrinagem”, como diz Wilhelm Meister de Goethe no seu livro homônimo. Esperemos, o poeta é jovem e muito tempo se desenha no grande futuro.



Cuiabá-MT, 28 de junho de 1.984.




1 Ricardo Guilherme Dicke, maior escritor da Literatura Brasileira em Mato Grosso, autor de “Deus de Caim”, “Caieira”, “Madona dos Páramos”, entre outros, todos editados pela Carlini&Caniato

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