O grande artista da viola de cocho

Habel dy Anjos fez do instrumento de nossos ancestrais inspiração para viver e criar

JOÃO BOSQUO
Da Reportagem

O professor, maestro, pesquisador, compositor, musicista, cantor e compositor Habel dy Anjos também está se transformando em museólogo... Ops! Museólogo é o profissional que trabalha em museus. Deixe-me corrigir: está se tornando um criador de museus. 

Embora brinque "que ele está virando peça de museu", dentro da casa de quase 500 metros quadrados, na qual guarda uma infinidade de peças – que vão de instrumentos musicais (incluindo réplicas de instrumentos antigos) que vão da viola campesina, berrantes, pianos e, claro, a viola de cocho; aparelhos radiofônicos, eletrolas, toca-discos e, não poderiam faltar, discos de todas as rotações. 

A nossa conversa foi nesse ambiente de ar e sentimento de música e recordações, no qual Habel dy Anjos, sem precisar de incentivo, demonstra toda sua empolgação para falar do que ama, verdadeiramente, que é a música e a viola de cocho e do legado que espera deixar para as futuras gerações, além da sua obra de resgate ou, como ele diz, de descolonização da viola de cocho. 

Habel dy Anjos é natural de Uberaba, perto de Uberlândia, em Minas. Cresceu com a música dentro de casa já que o pai, Abel Santos Anjos tocava, entre outros instrumentos, gaita, era cantor de tango, fazia programa de rádio e tinha um serviço de alto-falante, a ASA - Serviços de Alto Falante. 

Serviço esse que chegou a atender o Dr. Ulysses Guimarães que, mais tarde, veio a ser o Sr. Diretas, Timoneiro da Democracia e, em 1988, promulgou a Constituição Cidadã, que sobrevive aos trancos e barrancos. Na família, porém, só ele e o irmão José Milton, engenheiro, herdaram o gosto pela música. 

Habel conta que chegou a iniciar o curso de Filosofia, mas não era bem aquilo que queria e mudou-se para São Paulo para cursar a Faculdade de Música. Para sobreviver, dava aula de violão clássico no Conservatório Anchieta e (a história mais uma vez se repete) trabalhava na noite tocando piano, além do violão, instrumento de origem, no Restaurante Massimo, de Massimo Ferrari, restaurante que fechou as portas em 2013. 

Corria o ano de 1987, o clima da democratização embalava o país, Habel se forma e recebe o pedido de currículo por parte de Therezinha Arruda que assumia a Casa da Cultura de Cuiabá, na gestão de Dante de Oliveira. A decisão de se mudar para cá, porém, deve-se ao incentivo do primo Toninho Mineiro, que tocava uma companhia de rodeios. "Olha, pode jogar todas as roupas de frio. Aqui faz um calor de 40 graus", avisou. O filho de Uberaba acreditou e não trouxe uma roupa sequer de frio. Na madrugada em que desembarca em Cuiabá, 2 de junho, todavia, fazia um frio perto dos 4 graus. Era a Lei de Murphy funcionando. 

O primo, na euforia, depois de pegá-lo na Rodoviária do Coxipó, levou Habel para conhecer o Mercado do Peixe onde foi comprar um pintado. Era de madrugada, lembra, ele tropeçou numa "pedra que tinha olhos". A pedra era a cabeça de um jaú, certamente, enorme. E uma cena inesquecível: já quase amanhecendo, um canoeiro de pé, "naquelas canoinhas fininhas, levanta um pintado de quase um metro". 

Além de regente da Banda Municipal de Cuiabá, à época subordinado ao Departamento de Cultura e Turismo – Casa da Cultura, foi contratado também do Sesc para trabalhar com recreação e fundador e regente do Coral. Empregos que deixou quando passou no concurso da UFMT para ser professor, em 1989. "Ao vir para Cuiabá aconteceu esse encontro mágico". 

Nesse encontro mágico também está envolvida a viola de cocho que ele conheceu in loco, já sabia de sua existência por meio da literatura especializada. Explica-se. Enquanto regente da banda, em uma das inúmeras retretas em praças públicas de Cuiabá, conheceu os cururueiros e suas violas. Como professor de instrumentos antigos, de cordas, a paixão foi instantânea. "Menino, quando eu vi a viola de cocho pela primeira vez fiquei encantado", confessa. 

Ao passar no concurso da UFMT já estava com o projeto Viola de cocho engatilhado e criou a disciplina dentro do curso de música da universidade sobre o instrumento. Ao elaborar o seu primeiro trabalho acadêmico, para dar base teórica para o curso em sala de aula. Habel vem a conhecer os trabalhos, primeiro "Cocho Mato-grossense: o Alaúde Brasileiro", de Julieta Andrade e Roberto Corrêa, violeiro, professor e pesquisador que desenvolveu o trabalho "Cururu e outros cantos das festas religiosas – MT", LP editado com recursos do INF/Funarte (1988), e também com parceria da Casa da Cultura. 

Essa pesquisa resultou no primeiro livro "Viola de Cocho – Novas Perspectivas", editado pela UFMT, de Abel Santos. Ué, agora é Habel dy Anjos? Sim, avisa o artista, que fazia dupla com o Mestre China e tocava na noite. 

Mudou quando uma amiga falou da numerologia e do poder do nome de cada pessoa. "O nome convém aos seus donos" e do nome herdado do pai: Abel Santos Anjos Filho adotou-se o agá - que na língua portuguesa só presta serviço quando participa dos encontros vocálicos, lh, ch, nh e depois aparece como mero enfeite - e ficou Habel. De sobrenome optou pelo Anjos. "Santos não tem asas e anjos tem" e o "dy" entrou de contrapeso na numeração geral. 

Abel... ops, Habel dy Anjos conta que aí aconteceu um 'boom' em sua carreira, ao mesmo tempo em que via a crescente aceitação da viola de cocho por parte de outros pares. O maestro Leandro Carvalho adotou-a na Orquestra de Mato Grosso, violeiros como Rui Torneze, autor de livros sobre a viola caipira, empolgaram-se com a viola de cocho, enquanto outros, jovens, já usam a viola no rock e a viola elétrica, como se pode ver no Festival Cerrado Music. 

Habel dy Anjos conta que, quando chegou, os violeiros falavam coxim, cocho viola. Mas não a conhecia por viola de cocho. Esse nome ele acredita que seja dado por acadêmicos. Tanto é verdade que quando esteve em Portugal à procura da viola campaniça, ninguém conhecia e, no entanto, tocam a guitarra do campo, que é a mesma. 

Ao mesmo tempo que conhecia os cururueiros seo Caetano, João Batista Rodrigues, Daniel Silva, Francisco Sales e Luiz Marques da Silva (que mais tarde veio a fundar a Afomt – Associação Folclórica de Mato Grosso), com os quais veio aprender e ensinar a viola de cocho. Habel explica que a simplicidade dos acordes dos trabalhadores na roça, com seus dedos calejados, essa simplicidade é natural. Em sua carreira, ele mostrou todo o potencial que a viola tem, com dedos treinados em conservatórios e aulas e aulas e aulas de violão. 

E aconteceram coisas incríveis, como garantir um novo paradigma para a viola de cocho. Quando do processo de colonização, Cuiabá, depois dos bandeirantes, dos garimpeiros, no século 18, conforme pesquisa de Alcides Moura Lott, recebia inúmeras peças teatrais, junto com os instrumentos musicais: violinos, violoncelos, enquanto a sociedade abandonava a viola de cocho que permanecia apenas na periferia da cidade. 

Karl von den Steinen, lembra Habel dy Anjos, explorador e antropólogo alemão, que andou por estas paragens no século 19, conta em seu livro que viu "índios" divertindo-se com instrumentos rústicos – como descreve a nossa viola de cocho, o mocho e o ganzá. A viola de cocho, portanto, é uma herança anterior. 

"Por uma questão de ordem de chegada: Julieta Andrade falou, o Roberto Corrêa veio, identificou e eu entrei no rastro deles", relata. 

Quando chegou, a viola de cocho andava no saco, meio que escondida, os violeiros com um pouco de vergonha, e esse trabalho de descolonização: "Peraí, você trouxe seu violino, seu piano, mas eu tenho aqui um instrumento em pé de igualdade, que é da minha cultura". 

Habel dy Anjos não para. Continua fazendo shows, recitais, espetáculos aulas, gravando CDs, escrevendo livros de ensaios e poemas e crônicas, e, principalmente, levando a viola de cocho a todos os lugares. 

Ah, pra terminar. A casa-museu onde reside também tem uma lembrança do pai. Que por aqui já tinha andado, para pescar, no Rio Vermelho e outros rios de tantos peixes. Quando viu o pintado nas mãos do peixeiro equilibrista, em pé na sua estreita canoa, soube por que o pai gostava de pescar por aqui. Não é mentira, não. 

19.04.2015 

Nenhum comentário: