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Há Natal e Há Natais

A Glorinha Albuês

Existe, sim, um Natal diferente do nosso
Diferente de tudo aquilo que podemos apossar
com nossos olhos vorazes, dentro de uma casa
e difere de outras tantas casas de uma cidade

(Essa diferença está na felicidade da fartura
à daquele que não tem pão
o muito que tem é privação)

O Natal negro do preto, sempre preto,
por exemplo, é diferente ao do branco

Como também é diferente o Natal
dos que viveram das sombras nos porões
aos daqueles que sofreram suas torturas;
embora contemporâneos
não são cúmplices neste Natal

É, ainda, diferente o Natal
que se levanta em duros tragos de cachaça
em companhia do cansaço, fome, filhos e mulher
e a certeza de não estar adiando um Natal melhor;
daqueles à base de champanhe, vestindo chambre
ao lado do poder chanceler e dólares

O Natal do índio, que se tornou cristão na marra,
difere, em essência, ao do cidadão terno e gravata,
esquivo nos olhos, medo e avareza de ladrão...
- Que outro ladrão terá 100 Natais de perdão

Como é avesso o Natal das mulheres
que nunca sentem orgasmo,
são estupradas em longínquas noites escuras
e procriam e criam como se isso fosse sina,
daquelas que se perfumam e, mesmo no começo,
vivem o fim de suas vidas esposas
de uso exclusivo em serviço

Como é diferente o Natal
do homem doente ao do homem enfermo,
do homem demente ao do homem loquaz,
do homem mendigo ao homem subserviente,
do homem bandido ao do homem marginal,
do homem animal ao do homem falido...

E o Natal se diferencia anualmente
em toda América Latina operária que trabalha
na esperança comum de um amanhã diferente
e por que há no ventre de Maria
(concepção do amor pleno) uma criança
e irá se chamar Salvador Allende.

#SonhoDeMenino

Sobre Solidão


Não podemos agora viver,
somente viver,
quando tantos em volta
são sobre-existentes...

E isso, amigo, é, às vezes,
difícil sentir

Sentir que somos mais sobreviventes,
não simples existentes,
e não podemos no momento
viver o dia, a solidão do dia...

- Sobreviveremos, ao menos,
ao dia da solidão,
sem medo de existir?


#SonhoDeMenino

Segredos

Ai, meu Deus!, as coisas acontecem
tão sem procedimento como acontecem
ninguém, nesta hora, calcula o ato
simples de acontecer o mundo

Como, então, decifrar o poder da flor
em brotar e se desdobrar em flor;
o mágico criar brinquedo pro menino
e assim mesmo tornar-se homem?
Como desvendar o segredo do mel
em ser mel, com sabor de mel
pelo simples prazer de ser, e
por que assim elas acontecem?

Ai, meu Deus!, as coisas acontecem
e ninguém, neste momento, pode calcular
as coisas acontecendo dentro de nós
com a simplicidade de segundos...
                           Nem os generais.

#SonhoDeMenino

Da Casa Abandonada


A casa, agora vazia,
lembra do pai austero
que nunca satisfez o amor

Agora, a casa vazia
revê a mulher saudosa
com o amante aos sábados

Vazia a casa, agora,
sente a falta da filha
com seu riso desmesurado.

#SonhoDeMenino

Das Pessoas nos Bares

Nos bares, os copos de cerveja
vão às bocas das pessoas
que riem brancos dentes
sem necessidade de rir

É um riso à força,
como tirado a fórceps,
numa tentativa de roubar,
como se rouba uma maçã,
o fel da solidão...

- Os copos de cerveja, nos bares,
amornam-se nas pálidas mãos.

#SonhoDeMenino

A Cidade

A cidade amanhece,
vive e adormece
sem nenhum abalo no seu ciclo
 


Ninguém, ninguém é capaz
de tirar a cidade
dessa monótona
          monotonia.


#SonhoDeMenino

Das Gentes no Ônibus

No ônibus
dezenas de pessoas,
em poucos metros quadrados,
não se conhecem,
não se olham,
não se veem

Algumas, às vezes, são parentes
distantes, mas parentes
e não têm nada em comum
senão a fome, o desespero
a insensibilidade humana
misturados num poço de vaidade

Canção do cão da noite

O cão soturno vigia a noite
por qual passam leves sombras
de fantasmas indecifráveis

O cão vigia a noite soturna
com olhos vagos, vesgos
nos vultos voláteis

O cão vigia a noite semente
de lembranças constantes
dos eternos contrates

A noite vigia o cão útil
cheio de anseios noturnos
professando o dia pelos olhos.

#SonhoDeMenino

O Homem Não Morre Porque Quer


Andas corredores pela casa,
o quarto solitário, a sala vazia,
a redoma abandonada na área
e não percebes nenhum parente

Percorres tudo como se estivesse
a vida, o riso, o ar e o gesto
de amor, de amar, dar e receber
ainda impregnados nas paredes

Não vês pragas, pregas, rugas,
os pregos enferrujados dos quadros,
o acolchoado cheirando a mofo,
a bengala inútil quebrada no canto...

- Acorda! Assusta! Desperta! Veja,
a vida benfazeja, mágica e alegre
está apagada, riscada do quadro,
suprimida nos mínimos detalhes
Vamos sair pelas ruas e cantar,
gritar, encher os pulmões e gritar;
estender os braços, tender os músculos
e dançar o samba, o tango, dançar

Preencher todos os vãos da casa
com vozes hilariantes das crianças,
expor-se e ser o espetáculo da vida
no máximo, no ápice de nosso poder.

#SonhoDeMenino

Ninguém

O homem não pode,
na sua solidão, lutar contra
as dores que o angustiam
se as dores que o assediam
são como de um parto,
só se pode sentir sozinho,
sem repartir com ninguém

Ninguém é quem o acompanha
por todos os vãos lugares,
todos os tristes lares,
todos os mudos falares,
todos os vazios mares...

O homem, na sua solidão
é ninguém.

#SonhoDeMenino

A Mesa Farta


Os gritos dos gatos mudos
são deliberadamente profanos
dentro do surdo mundo
de felinos calados

Espada-se por momentos
a voz aguda no ar etéreo
e estéreos gritos histéricos
de socorro e SOS tardios

Não se pode no tempo dilacerado
planejar a felicidade
pra amanhã, daqui a pouco
nem para o século seguinte

Não. Os felinos não deixam
sonhar, nem momentaneamente,
com a mesa farta de pão
de vinho e pão da consagração.

#SonhoDeMenino

Sonho de Menino é Piraputanga no Anzol

Os peixes estão dormindo
Embalados por sonhos úteis
Que lembram antigos parentes
Perdidos por outros rios...
- Menino, menino, menino,
Tira daí esse anzol
E deixe os peixes do Cuiabá
Sonharem em paz.

Cuyabá ainda

Cuyabá ainda reparte
verdes
          verduras
                       verdejantes
verdor venturoso
apesar de seus assassinos
Cuyabá ainda educa
meninos
             pescando à beira do rio
peixes:
          pacus
                   piraputangas
apesar de seus inimigos

Cuyabá ainda inspira
                               cuidados
                               com a poesia
                         projetos de amor
                         espermas serenos
apesar de seus poetas.

Poema Noturno

Saio noites em busca da verdade
vertente verde de aspirações
de sonâmbulos transeuntes
em ônibus de todos nós

Saio noites em busca de água
às margens de rios estranhos
esquecidos, esquecimentos aquecidos
por mentiras de leprosos

Saio noites em pouca companhia
de minha própria sombra lunar
de loucas luas por musas confusas
como mariposas de lâmpadas astrais

Saio noites serpentes em mágoas
ofendido por palavras ferinas, fétidas,
porém fugaz. Minha alma repara o ato
e separa o claro-escuro-cinza

Saio noites em serena meditação
como bêbado, mendigo, aprendiz
sem passado, mas presente com sábia
experiência de espectador sóbrio

Saio noites em busca das palavras
de homens, mulheres, todos crianças,
de muita pedra e lavra
síntese de nossa lavoura

Saio noites afora, loucamente,
por sanatórios, hospícios
– choques não bastam e loucos gritamos:
abaixo a tristeza de ofício!

Saio noites melancólico nos olhos,
mudo de mudez dos abusados,
dos bastardos desvirginados,
em abruptos estupros sectários

Saio noites adentro canino,
cabisbaixo como cão vadio,
maltratado sempre a pauladas
impunes de serviçais policiais

Saio noites em neve lembrança,
transparente, lanterna na mão
buscando sempre, sempre, sempre
e mais a chamada prima-estação

A Onça de João Sebastião



De repente
zás!, a onça
do quadro
de João Sebastião
salta sobre mim

e povoa toda
minha alma
mansa e calma
como se fosse
somente selva.

Na cidade em que vivo teve um prefeito

Esta cidade, amigo,
foi pequena como daqui-ali
O Armazém Mercado
de João Cartola
ficava na Av. Ponce
e aos sábados via as feiras livres
sombreadas por palmeiras

Um prefeito,
desses modernizadores,
começou a azular
tudo que fosse possível
ser memória
e não parou mais...

Cuiabá Pequenininha

Penso (agora) em tuas palavras
Dona Menina
Esta Cuiabá ainda é da gente
que faz melado no tacho
pra fazer rapadura pra vender
Penso (em tuas palavras) agora

Cuiabá não tava como tá hoje
Era pequenininha
as ruas estreitinhas
tinham outros traços
Coxipó somente mato

Penso em tuas palavras (hoje)
Tudo tinha de monte
Banana – morro de banana –
feijão, milho, mandioca
Tudo, tudo era fartura

Cuiabá, viajo (muito) pelas ruas
conversas de esquinas
entre becos até o Lava-pés
Cuiabá, o mundo é grande
e dá para todos nós

Penso (sempre) no retorno
um dia, mesmo porque será um dia
vamos brincar o cururu
e o povo ensina mais...

Retorno e reencontro a palestra
bem aí assim e passo a emprestar
argumento com gente minha...

De tudo fizemos um poema
e continuamos curiosos.


#SonhoDeMenino
#SeletaCuiabana

Camila


A primogênita de Luiz Edson e Rosana Fachin


Camila, não sabes
a explosão que aconteceu
no peito de teu pai

Nem ele, daqui a pouco
saberá explicar
Foi o momento, o instante
que florescestes, alvorecestes
flor, sol, brilho e cor
Vida que deste a vida
que buscamos em vida

Um poeta maior da cuiabania

Por Ricardo Guilherme Dicke*1


Sonho de Menino é Piraputanga no Anzol: João Bosquo me mostrou só este original acima (sério), mas deve ter outros. Um poeta que escreve assim deve ter mais de um livro sério. Onde o assunto maior deve ser a nossa cidade “apesar de seus assassinos”, “apesar de seus inimigos”, “apesar de seus poetas”. Poeta inventor do antiespelho, ele se espanta com os modos com que os peixes tentam decifrar este estranho mundo onde existem autoridades, pessoas gradas e outros bichos, afora outras águas de outros rios e de outros mares que “são para outros peixes”...

É também descobridor dessa coisa des-solidão onde ele acredita ver seu pai. Penso em Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral de Mello Neto ao ler os poemas de João Bosquo Cartola e participar de estranhamente da surda beleza que ele vai buscar na força de sua contenção, que faz a sua ciência dos ritmos e que o sagra poeta maior apesar de jovem. Porém, esses mestres são apenas referenciais, pois, para ele, para ser mestre, mesmo sendo desconhecido dos seus conterrâneos poetas numa cidade povoada de poetas, falta pouco, em toda acepção da verdade, para encontrar o verdadeiro caminho do mestrado dessa poesia.

João Bosquo ainda é jovem. Os milagres da forma e do conteúdo, do ritmo e da força estão à sua espera para daqui a mais uns dez ou vinte anos de aplicação e da feitura do oficio de poesia. Os poetas não se fazem num dia, a não ser que se seja Rimbaud, e mesmo assim ele não se fez num dia e sim em toda uma adolescência genial.

Num poema como “O Homem não morre porque quer” ele parte do pessimismo em direção ao otimismo, numa flagrante explosão de talento aprendida com os poetas mais que maiores, os poetas de sempre, e não só neste poema como quase todos os desta coleção da Piraputanga. Num belo e estranho poema como essa “Canção do cão da noite” somos abismados pelo vagar de mistério no balouçar vago que propicia a noite refletida nos olhos de um cão.