Mãos ao alto IV

Assim caminha a humanidade: este imita aquele,
A voz nem se parece, mas há uma falta de ridículo
Em meio a tudo ao que a gente vê, vive e vivencia

Uns, como os políticos, perderam a vergonha na cara,
São desonestos de chapa, e condenam os hipócritas
Que se fazem de virgens arrependidas, mas não arrepiam...

Quando a oportunidade aparece: o juiz vende a sentença,
O desembargador a liminar à meia-noite, o ministro o parecer
O advogado – que espetáculo – aprendeu tudo na faculdade
Com esses professores: juiz, desembargador, ministro...

O pedreiro, o padeiro, e todos os sem eira e nem beira,
E se miram neles e acham no direito de condenar o barão...
Mas a sentença, para ser justa (justiça se faça, é só uma)
Aqui na terra é aquela que diz: ladrão que rouba ladrão...

(Clique aqui para ler o primeiro da série)
 27/11/2004
#ImitaçõesDeSoneto

7. coração incômodo

junice, sinto incômodo no meu peito!
- te incomoda amar alguém?

sinto incômodo no meu peito,
sinto meu coração incomodar
meu peito, agora, não tem
queda livre por ninguém,
nem mágicos, trapezistas,
corpo de baile, gols de letras
góticas e eu na arquibancada;
toca-discos, dicionários
e farmácias de plantões...
agora só tem esse trotar
cadenciado de querer-te bem...

- isso incomoda.

6. peito calado

junice, não entendo teu peito
sou brasileiro, não te entendo
brasilidade não basta,
é preciso algo mais:
assim como ser faraó,
adivinho ou menino

adivinho... é muito complexo;
menino... não sonho mais;
faraó... séculos já passaram

junice, não entendes meu peito?
ele é tão cuiabano calado,
sentado à tarde no quintal,
esperando histórias de fantasmas
que minha avó não conta mais.*

* Em Cuiabá, quando ainda não se tinha a televisão, as crianças sentavam em torno das pessoas mais velhas para ouvir histórias, fantásticas histórias de bichos encantados, espíritos, assombrações e fantasmas.

5. tristes

estes tristes pensamentos
vieram, com certeza,
dos pensamentos dela
uniram-se em tristezas,
em igualdade de forças
sem um casamento

o mundo a falar,
os não pássaros a cochichar:
- são amantes!
ficamos a rir da ignorância alheia
eles não vêem que amores precisam
de corpos vivos e febris
e nossos perfis estão tristes.

Tuim não sabia

Tuim não sabia
Pensava que era raso
o lago que foi nadar

Tuim não era bamba
morreu depois de três
braçadas no lago
que acreditava raso.


Proálcool

Os alcoólicos anônimos
intensificam suas campanhas
- Devemos beber menos
para sobrar mais álcool
para o Proálcool!

O alcoolismo é uma doença, claro,
afirmam os alcoólicos anônimos
mas não tem consciência
da verdadeira doença
que assola este país
que sangra nossas terras
embebeda os poderosos
em litro lucro fácil

Meu pai em silêncio

Meu pai está morto dentro do armário,
que nunca existiu em nossa casa.
Por estar lá, calado como um bule,
causa surpresa e ninguém sabe
a metáfora desse estar em silêncio.

Meu pai está morto dentro do armário
escuro pelo tempo que a tudo escurece.
Poucas pessoas sabem disso, mas as madeiras,
que guardam livros, louças e defuntos,
nada esquecem e registram na sua memória.

E de memória a madeira lembra
que meu pai não foi santo de pau-oco,
nem santo, nem pau-oco, apenas um comerciante
e se julgava esperto, entretanto foi enganado
pelo sócio padeiro que roubava trigo...

O armazém entrou em concordata
fechou as portas, foi à falência e meu pai
morreu do coração, pobre e desgraçado.

Hoje, ele se encontra no armário
e ninguém lembra de lhe perguntar
sobre seus amores idos, filhos
e o motivo de se encontrar quieto,
silencioso como um relógio
estragado que não faz mais tic-tac…

Firmamento

O céu arruma as nuvens
que apronta os temporais

A gente apronta a casa
que arruma o casamento

João, desista desse matrimônio,
nesse time não tem entrosamento.


Remanhecer *

Morri e aqui estou
Neste corpo que nunca foi meu
(Nem a outra pessoa pertenceu)
Mesmo quando muito amei
Se amar não pude
Como fora minha intenção

Morto da silva
Estou esperando (quem sabe)
Um beijo que me adormeça
Faça-me sonhar menos
Fora destes pesadelos
Que não se dissipam
Nem que se desligue das tomadas

Cuiabá Gentil

Olho o mapa e vejo as ruas da cidade
In loco ando, passeio, transito,
navego, enfim entre elas, por vielas…
e cada rua nos dá uma leitura necessária

Há porém, aquelas ruas – sem saída –
que não conheço, não consigo lê-las
mesmo com auxílio de urbanistas
e dos admiráveis Burle Marx da tela

Já as ruas transparentes, que nascem
nos primórdios da formação
da cidade, são um alívio, mexem
com as artérias e renovam as lembranças felizes

Eles não Gostam de Pretos

Dedicado a José Catalão

Eles não gostam de pretos
Dizem que são brasileiros
e vieram navios negreiros
mas não gostam de pretos

Eles não gostam de pretos
Dizem ter um pé na cozinha
mas não gostam de pretos

Tic-Tac

Meu coração
Sofre em silêncio
Feito relógio digital
Nem faz tic-tac.

Lembre-se, sempre:

Toda viagem começa com a compra do bilhete.
Sem crédito, não tem como chegar onde se quer.

O coronavírus é democrático

O coronavírus Covid-19 vai matar muita gente
muita gente irá morrer por conta do Covid-19
É da lei, de tempos em tempos
uma nova doença aparece

Depois de muita gente morta
a ciência descobre a cura,
a prevenção,
a vacina,
enfim, o remédio exato

O Covid-19 na sua sina
matará primeiro os pobres,
os sem remédio algum,
depois os remediados
e no meio, entre um e outro,
um ricaço, tipo o dono da Ambev
que, embora com boa saúde,
é velho e o coronavírus gosta de velhos...

Um Segundo

O poema feito com precisão

de um segundo,

quando embargava no ônibus,

não explodiu,

se perdeu no caminho

entre a intuição e o papel.

Tudo Será Remexido

O começo de um poema
pode acontecer de manhã,
no meio da tarde ao entardecer
ou na noite querendo madrugar

O poema, imagina, é úmido
seco, entrecortado, parecido
novo, conhecido, enfim, remexido...

Globo Rural 01 03 2020 Governo Federal corta bolsa família no MA


Vendo essa matéria de Sidney Pereira, no Globo Rural, exibida hoje, 01 de março, lembrei-me de um antigo poema, publicado no livro "Abaixo-assinado" (1977)


Menina de Abril


Menina de abril
dia primeiro
mentira foi

Não tem pão
legumes não tem
Menina de abril
dia primeiro
mentira foi

O prato sobre a mesa
vazio se encontra
A saliva mata a sede
a forme mata a fome

Menina de abril
dia primeiro
mentira foi

Ventos não ventam
salários não aumentam

Menina de abril
tudo é mentira
Que Pedro operário
de vida melhorou
que a chuva
na lavoura choveu
que a colheita foi boa

Dia primeiro
mentira foi.